terça-feira, 22 de setembro de 2009

Primavera Presente

21 de setembro. O inverno se vai com a chuva, e é ela quem traz a primavera. O zigue-zague manhoso do tempo. A destreza da vida. Há alguns dias não escrevia, não por falta de vontade, mas por não ter encontrado algo que quisesse compartilhar, realmente. Suficientemente justo. E confesso que (hoje) escrevo sobre algo que já foi compartilhado. Isto não me representa um problema, pelo contrário. Representa o fruto de um diálogo - mais do que uma conversa - que não acontece com qualquer pessoa e não pode acontecer quando estamos preocupados com a hora ou com compromissos que deveriam ser respeitados, mesmo que a contragosto. Tenho aprendido que não é necessário agir contra a vontade. Diálogos demandam tempo. E são, cada vez mais, necessários.
O dia seguia como o planejado, nada fora do comum. Para minha cômoda satisfação. Deveria ir até o outro campus para resolver algumas questões e sou pego pela chuva no meio do caminho. Chuva muito forte e incomum para essa época do ano, mas que me permitiu uma experiência inusitada e, por isso, enriquecedora. O inusitado nos enriquece porque se choca com nossa realidade, faz com que ela se modifique. Se transmute essencialmente. Fico preso por alguns minutos com o grupo de alemães que em karawane visitam a universidade onde estudo e me assusto com nossa similaridade.
Somos muito diferentes por vários motivos: o lugar onde nascemos e nossa aparência física, nossa educação e modo de vida, o idioma que falamos e o consequente modo como (vi)vemos o mundo. Somos diferentes e intimamente comuns. Sou um completo leigo em língua alemã e quando não conseguimos nos envolver na conversa alheia, o que fazemos? Passamos a observá-los. E como é bom observar desprentenciosamente. Observei os alemães por alguns instantes, silenciosamente - ainda que com uma louca vontade de interagir com eles. Observei-os e superei a barreira idiomática e indo de encontro ao mundo babélico os compreendi. A língua não nos dividiu, aliás, a falta dessa compreensão permitiu que eu me juntasse com eles. Eles falavam entre si: alemão, inglês e espanhol, e incrivelmente se comunicavam, se faziam entender pela universalidade do gesto. O gesto do afeto. O gesto de defesa. O gesto de compreensão. Um gesto de desamparo: um grupo de pessoas em um mundo de significados que não é o deles e que, ainda assim, se fazem entender. Magicamente. Porque inexplicável. A doçura do gesto que supera a palavra falada, já que esta é apenas ferramenta para a conversa. O diálogo é do campo dos gestos que, mesmo sendo primitivos, apontam para o simples, para o essencial.
Dialogar é colocar-se inteiro, com seus gestos. Dialogar é dar-se no olhar.Como presente. Utilizar a palavra para atingir (ou ao menos tentar) aquilo que está para além dela. Para dialogar, não é preciso palavras. No diálogo há espaço para aquilo que não cabe na conversa. Há uma trégua para o fundamentalmente necessário.
Precisamos de uma trégua. Dialogada.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Incompletude

“Quando entrar setembro, e a boa nova andar pelos campos.”

Setembro chegou, primavera já vem. O mês muda e com ele a estação. (Qual?)Rapidamente, caminho em direção ao fim do ano e uma pergunta me vem como a letra da música: qual a boa nova, a nova alegria, a esperança que carrego comigo? O que estou colhendo e que plantei outrora? O tempo parece não existir, mas é inevitável. A sua passagem é algo que não se pode deter. Parece não existir, mas nos é real. O tempo que nos enconde na História e que por isso nos faz homens. Somos poeira de estórias. Marcas de vida e realidade no tempo. O tempo cronológico. O tempo relativo. O tempo pessoal. O tempo, sucessivo presente. Presente. Verbo e objeto. É por meio dele que percebo que tudo passa – ainda que não espere pela mudança – mas antes que as coisas passem, elas florescem e frutificam, trazendo alegria. Experiência de beleza. A cada dia percebo com mais clareza que há algo de belo - há algo que precisamos viver - escondido nas coisas vividas: é possível perceber o belo no cotidiano, ainda que ele rompa com o pré-estabelecido ou com o sonhado, com a paradoxal rotina de sonho e realidade. É possível enxergar a beleza nas grandes experiências que nos machucam e fazem sofrer. Nas pequenas experiências que nos fazem sorrir. Perceber a existência. A presença da vida.
Tempo. Primavera. Flores, frutos e amadurecimento. Setembro chega, incompleto. Há algo que falta.

“Primavera soprando um caminho mais feliz”

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O dia em que tudo vai acabar

Um dia tudo vai acabar e isso é óbvio, porque o tudo nunca existiu. Aliás, nem o nunca. Remexendo em alguns recortes de textos - guardados do tempo - encontrei um texto de agosto de 2006, de um autor chamado João Pereira Coutinho que escrevia à época na Folha de São Paulo. Me lembro que guardei esse texto porque o achei, realmente, muito bonito e significativo. Hoje o releio, me impressiono com sua beleza e o quanto ele me corresponde (ainda) hoje. Acredito que vocês devam conhecê-lo. Pela beleza.
"(...) com a devida vênia aos sábios, nada (...) invalida meu fascínio aterrador: o dia em que séculos de vida e civilização serão apenas um segundo, ou um suspiro no eterno silêncio do universo. Ter estado, ou não ter estado: apenas uma diferença gramatical. E as obras que fomos acumulando, lendo, vendo, vivendo para nossa beleza e consolação, serão apenas fantasmas sem memória ou sem gente para os recordar. As palavras todas, as imagens todas. Serão como pó mais negro que se espraia pelo vazio como uma onda de esquecimento.
Eu sei que tudó é assim. Não falo do mundo, mas falo de mim. O poeta inglês Philip Larkin, que a crítica culta persiste em desprezar, escreveu há muito o poema definitivo sobre esse confronto pessoal com o nada. Chama-se "Aubade" (1977) e retorno a ele sempre e sempre e sempre. Porque existe nas linhas de Larkin a nitidez absoluta dessa promessa absoluta: o momento em que não iremos ver nada, ouvir nada, sentir nada. A ausência de pensamento, a ausência de qualquer ausência. Não estaremos cá, não estaremos lá, não estaremos em lugar algum. No poema de Larkin, é a manhã, a certeza da manhã que regressa com sua luz tímida, que resgata a angústia pessoal da meditação insone. Temos coisas para fazer. Pessoas com quem estar. Rotinas a cumprir. Barreiras invisíveis com que adiamos a certeza luminosa do fim. Continuamos?
Sim, continuamos. Não tenho respostas, não tenho perguntas. Não tenho conselhos para dar ou vender. E expulso os desesperados como se fossem os vendilhões do meu templo. Sei apenas que o presente é este e que nele habito eu. É pouco? Não. É tudo. Porque o tempo que me resta dispensa todo o resto. E porque a noite que me espera seá sempre parte dos dias que vivi."(O dia em que tudo vai acabar, João Pereira Coutinho, agosto de 2006; jornal Folha de São Paulo)
O que tenho para dizer.Por ora.
Hoje.